Cosmologia
O espectro de corpo negro
O nome corpo negro tem sua origem no estudo da termodinâmica e evidencia a principal propriedade deste objeto hipotético: ele absorve toda e qualquer radiação incidente. Você somente vê o papel que agora está nas suas mãos porque ele está refletindo boa parte da radiação que nele incide. Caso ele fosse um corpo negro perfeito, seria impossível ler este texto.
Por outro lado, qualquer corpo emite radiação. Isto se dá simplesmente porque a todo objeto está associada uma certa temperatura, que é reflexo do estado de agitação de suas moléculas. O espectro desta emissão depende de diversos fatores mas, no caso ideal, depende apenas da temperatura do objeto, sendo portanto chamado de espectro térmico.
Um corpo negro também emite radiação mas, neste caso, a emissão é perfeitamente térmica e descrita por uma lei bem conhecida da Física: a Lei de Planck. Esta lei (uma das motivadoras da mecânica quântica) nos diz como é distribuída a densidade de energia de um corpo, a uma dada temperatura, em função de um outro parâmetro que pode ser a freqüência. Esta distribuição de energia recebe o nome de Espectro de Corpo Negro.
A Astrofísica aproveitou este conhecimento do seguinte modo: os telescópios medem a intensidade da radiação que chega de uma determinada fonte. Conhecendo essa intensidade e supondo que a fonte possa ser comparada a um corpo negro, podemos estimar quanta energia ela emite na freqüência na qual estamos observando. Usando então a lei de Planck, determinamos a temperatura da fonte.
O Universo, a partir de sua origem, supostamente um estado de altíssima densidade e temperatura, evoluiu num processo de expansão contínua. Quando atingiu aproximadamente 370 mil anos de idade, sua temperatura estava em torno de 3.000 K e os fótons e a matéria que formavam o plasma primordial estavam fortemente acoplados, ou seja, o que acontecia com a matéria seria sentido também pela radiação e vice-versa. Nessa época, a energia média dos fótons se tornou menor do que o potencial de ionização do átomo de Hidrogênio. Como conseqüência, os elétrons livres foram capturados pelos prótons, formando átomos de Hidrogênio neutro, num processo chamado de recombinação (apesar de ser a primeira vez que as duas partículas se combinavam, de forma estável, para formar átomos de Hidrogênio). Com a diminuição do número de elétrons livres, a matéria e a radiação deixaram de interagir de forma significativa, iniciando um processo chamado de desacoplamento. Dizemos então que o Universo se tornou transparente à radiação e todos os efeitos provocados pelos processos físicos que ocorreram antes do desacoplamento aparecem como uma assinatura do Universo jovem na distribuição espacial dessa radiação, que pode ser lida hoje através das observações da RCFM. Chamamos de Superfície de Último Espalhamento à região em que estes processos físicos entre matéria e radiação aconteceram pela última vez, ao final do desacoplamento.
Esta radiação nos fornece, portanto, informações sobre uma época em que o Universo tinha cerca de 370 mil anos de idade e pode ser estudada a partir de medidas de seu espectro, polarização e distribuição espacial no céu. Essas medidas são feitas por experimentos que observam o céu em microondas. Esses instrumentos, dependendo da freqüência, podem operar no solo (em geral em locais de grandes altitudes) ou no espaço, a bordo de satélites, foguetes e balões estratosféricos. Para medir as flutuações de temperatura, os receptores são sintonizados numa certa freqüência e apontados para diferentes regiões do céu. Dessa forma, medindo intensidades diferentes do sinal da RCFM numa dada freqüência, podemos associar diferentes temperaturas ao corpo negro que emitiu esse sinal, no caso o Universo primordial. Podemos fazer um mapa da distribuição do fluido primordial que existia no Universo partindo das medidas das variações de intensidade da RCFM por todo o céu. Com esse mapa, é possível inferir os parâmetros que descrevem o Universo. O estudo da distribuição espacial da RCFM no céu é importante para que se possa escolher o melhor modelo cosmológico que explique como surgiram as estruturas de matéria que observamos hoje no Universo, como planetas, estrelas, galáxias, aglomerados de galáxias, e, em última instância, até mesmo a vida.
O instrumento FIRAS (Far InfraRed Absolute Spectrophotometer), que era um dos experimentos que compunham o satélite COBE (Cosmic Background Explorer), confirmou de forma espetacular, em 1990, que a RCFM possui um espectro de corpo negro quase perfeito. Essas medidas são impressionantes do ponto de vista observacional, já que os erros envolvidos são extremamente pequenos (Figura 1). Esse resultado se tornou uma das mais fortes evidências a favor do modelo conhecido por "Hot Big Bang" (ou Modelo Cosmológico Padrão) e mostra que a matéria e a radiação no Universo à época do desacoplamento estavam em um estado de equilíbrio termodinâmico quase perfeito, ou seja, tinham a mesma temperatura. A determinação precisa do espectro de corpo negro da RCFM foi uma das mais importantes contribuições ao estudo da Cosmologia, uma vez que ficou estabelecida de forma inequívoca a origem térmica dessa radiação.
Figure: Espectro de corpo negro da Radiação Cósmica de Fundo em Microondas.
Carlos Alexandre Wuensche - Criado em 2005-06-02